O Canteiro Móvel é um dispositivo pedagógico que visa a democratização da arquitetura ao unir arquitetos e arquitetas, construtores, estudantes e comunidade com o intuito de promover a troca de saberes em prol da elaboração de uma arquitetura do real, adotando tecnologias apropriadas e criadas com e dentro do território.
O Circo-lô, primeira obra mutirão realizada pelo Canteiro Móvel, teve sua primeira parada em uma Associação de Assistência à Infância e Juventude, denominada IDE, que funciona no contraturno escolar, atendendo cerca de noventa (90) crianças e jovens de 3 a 16 anos, entre os períodos matutino e vespertino, na cidade de Botucatu, interior de São Paulo.
O IDE é uma organização não governamental, de direito privado, sem fins lucrativos, de caráter assistencial, de educação e cultural, fundado em 2014. Nesta época as ações não tinham uma sede e as ações da organização eram feitas em ruas e praças. Em 2017 a parceria com a prefeitura foi firmada e passaram a ocupar o espaço onde o projeto descrito foi realizado. O principal objetivo do IDE é a atuação na promoção e na defesa dos direitos humanos de crianças, jovens, adolescentes e seus familiares, na coletividade. O IDE perpetua sua finalidade em apoiar e desenvolver ações para a defesa, elevação e manutenção da qualidade de vida desses indivíduos, promovendo inclusão social, focando nos recursos incentivados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em 2022 a Associação IDE manifestou a necessidade de ampliação do seu espaço físico para melhorar a dinâmica atual e ampliar o número de atividades e usuários, bem como de também abrir seu espaço para uso da comunidade, atuando como um centro de fortalecimento territorial comunitário. Assim, a fim de criar o programa de necessidade a partir das pessoas que fazem uso do espaço – crianças, adolescentes, professores, familiares e gestores -, foram realizadas oficinas de escuta para compreensão dos desejos, dinâmicas, fluxos e demandas, fundamentais para a criação do projeto. Um destaque importante da demanda foi o espaço externo onde as crianças passam muito tempo brincando debaixo de um sol forte ou ficam impossibilitada de utilizarem quando as intempéries são densas e impossibilitam o uso. Dentre várias funções, o Circo-lô é abrigo, sanando a necessidade de sombra e proteção dessas intempéries, também atende à necessidade de ampliação da estrutura física do local, dando condições também a usos pedagógicos, artísticos, culturais, dentre outros.
O projeto foi iniciado por arquitetos e arquitetas urbanistas do escritorio colaborativos Sem Muros Arquitetura Integrada. O processo de projetar foi colaborativo e, portanto, coletivo, a partir de leituras da paisagem e oficinas presenciais com as crianças, educadores(as) e familiares.
Através de visitas da equipe do Sem Muros ao local, houve um processo de escuta e interação para que a aproximação e envolvimento se dessem de maneira gradual e fluida, e foram colocados os desejos e sonhos da comunidade, dos alunos, funcionários e familiares do IDE para o local, desenvolvendo maquetes físicas de estudo e rodas de conversas, além da análise das condições climáticas, deficiências e potencialidades da localização e seu entorno.
Vale ressaltar que a maioria dos desejos expressosna aproximação com a comunidade IDE, principalmente com as crianças, traziam o elemento “árvore” como vegetação, sombra, casa na árvore e até lúdicos, como “árvore de algodão doce”. A partir deste processo e levando em conta todos os desejos levantados, os arquitetos e arquitetas deram início ao projeto que posteriormente foi compartilhado com a comunidade.
Tendo a árvore como grande referência, a edificação proposta apresenta formato circular, corpo estrutural em alusão a um tronco e cobertura a uma copa frondosa; o espaço no segundo pavimento remete a sensação de estar em uma casa na árvore. O projeto foi sendo aperfeiçoado a partir dos encontros e mais tarde ajustado com a equipe de construtores(as). A partir da sua definição, foram feitas as compras de materiais para a obra.
A construção foi coordenada pela equipe de bambuzeiros e bambuzeiras e contou com a participação dos educadores do IDE, da comunidade local e de voluntários. Como o projeto é considerado resultado das trocas entre os envolvidos durante o processo, visto que é desta troa de saberes que foram definidos os os melhores caminhos com os recursos disponíveis em cada momento. Desta maneira, o projeto carrega um pedaço de cada um que passou pelas etapas desenvolvidas.
A fundação, um radier, foi executada previamente à ação participativa. A partir dela foi preparada uma base circular em concreto ciclópico (com entulhos de obra) feita com aproveitamento do material de demolição de uma parede interna da edificação já existente, que terá a função de banco e de onde partiram os arranques dos pilares, que seriam erguidos no mutirão (construção coletiva) na sequência.
O mutirão aconteceu nos dias 10, 11, 12 e 13 de novembro de 2022, contando com voluntários inscritos e pessoas próximas que também se engajaram com a proposta de “mão na massa”, deixando pronta a estrutura da torre.
No primeiro dia o projeto foi partilhado com todas as pessoas presentes na obra: mestres(as) bambuzeiros(as), funcionários(as) do IDE e voluntários(as) para traçar as estratégias para que a viabilização da obra fosse otimizada.
Várias mentes pensando juntas continuaram aprimorando o projeto, envolvendo novos ajustes e outras maneiras de execução, o que trouxe mais força ao conceito, função e prática construtiva, evidenciando que na execução o projeto ainda se define.
Na sequencia foram confeccionadas as 16 tesouras de cobertura e nos dias seguintes ocorreram a montagem do “corpo” do Circo-lô. Os bambus desta estrutura cilíndrica recíproca partiram dos arranques da base de concreto ciclópico em diagonal e foram cruzados (em sentidos opostos) dois a dois. O travamento destes pilares e a estrutura da claraboia escorada condicionaram o apoio das tesouras principais, finalizando o primeiro mutirão do CANTEIRO MÓVEL. O processo foi muito importante pois criou parcerias entre pessoas que têm saberes práticos, conceituais e técnicos, estando elas no mesmo espaço e com o mesmo propósito de “aprender fazendo”. Após o mutirão a comunidade, juntamente com a equipe do Sem Muros e os bambuzeiros devem continuar a obra, realizando os fechamentos, tanto laterais quanto de cobertura, além da passarela de conexão com a praça em nível superior.
O Circo-lô é estrutura simples e leve, que se ergue de maneira recíproca – apoiando-se em si mesma -, constituída por dois pavimentos em formato cilíndrico, que traz o bambu como material em destaque, aplicado desde o esqueleto estrutural,, até a estrutura da cobertura, e também planejado para alguns fechamentos laterais que irão funcionar como brises, elementos que auxiliam no conforto térmico ao amenizar a incidência solar.
A proposta também busca a relação da intervenção com seu entorno. A Associação é próxima aos conjuntos habitacionais Cohab V e CDHU, onde moram a maioria das crianças e adolescentes ali matriculados, e possui dois portões de acesso – um inferior e outro superior, este último utilizado apenas para serviço.
A sua localização é estratégica e potente enquanto conexão de duas praças periféricas de Botucatu, que constituem áreas verdes de lazer, situadas em diferentes níveis, estando o IDE em um nível intermediário. Hoje o principal acesso da comunidade se dá pelo nível inferior, cuja faixa de pedestre na via desemboca na praça em nível inferior, que é arborizada e possui bancos, mais voltada ao descanso e contemplação. A segunda praça em nível superior possui apenas forração como área verde e uma quadra esportiva, pouco utilizada e, portanto, mais árida e erma, acarretando pouco conforto térmico e menor segurança. Assim, o terreno dessa intervenção apresenta a possibilidade de integração de áreas verdes, facilitação dos fluxos, transposição do nível intermediário ao nível superior, podendo ativar não só o segundo portão de acesso, mas também a praça esportiva, um território público existente, importante e pouco utilizado. Com este intuito o segundo pavimento do Circo-lô será uma biblioteca e terá uma passarela de acesso. Já o térreo poderá ser utilizado como área de convivência para aulas, reuniões, práticas corporais, artísticas, etc.
Nestes processos é importante conhecer as estratégias para a viabilidade econômica e no caso o projeto junto ao IDE é parte de um processo iniciado ainda em janeiro que teve por objetivo por em prática a ideia do Canteiro Móvel. Assim, no mês de janeiro o grupo envolvido no processo encerrou a campanha de financiamento coletivo para viabilização da existência do Canteiro Móvel atingindo a meta máxima que previa uma parte do orçamento.
No mês de fevereiro houve a aproximação entre a equipe do Sem Muros Arquitetura Integrada e IDE e entre os meses de março e abril aconteceram as visitas para reconhecimento do local, trocas com os gestores da IDE, oficinas de escuta com as crianças e adolescentes, com os familiares e com o corpo docente e gestor para elaboração do pré projeto, apresentação à comunidade e finalização do Projeto Básico.
Em agosto executou-se o radier e o banco em concreto ciclópico. O preparo da prática (mutirão) se iniciou com a chegada dos arquitetos(as) urbanistas à Botucatu nos dias 07 e 08 de novembro para a organização da estrutura necessária ao mutirão, que estava ocorreria nos próximos dias. De 10 a 13 de Novembro aconteceu o mutirão envolvendo arquitetas e arquitetos, contrutores, funcionárias e funcionários, comunidade, estudantes de arquitetura, e outros voluntários e voluntárias da ação.
O sonho do Canteiro Móvel
O projeto do Canteiro Móvel começou a sair do papel quando foi classificado em um edital da Benfeitoria em parceria com o programa “Todo Cuidado Conta” das redes Droga Raia e Drogasil, para participar de uma campanha de financiamento coletivo dentro da qual cada real doado teria seu valor dobrado, um “matchfunding”. A campanha foi um sucesso, e os proponnetes conseguiram ir além da meta, graças à força de todos os apoiadores que acreditaram nos propositos do grupo. Com o recurso arrecadado o grupo adquiriu um trailer, comumente utilizado para transportar carga viva (animais) e o adaptaram para que se tornasse uma grande caixa de ferramentas. A segunda parte do recurso foi direcionada para equipá-lo com ferramentas e outros materiais de projeto e obra; e a terceira parte foi aplicada em uma etapa da obra que foi complementada pela Associação IDE.
A ideia de uma escola itinerante de arquitetura sempre esteve presente nos sonhos dos membros do Sem Muros Arquitetura Integrada, e o Canteiro Móvel é o início da materialização deste sonho de construir uma escola itinerante pautada na realidade e no vínculo entre teoria e prática, e com isso colaborar para uma inversão do olhar e uma mudança de cultura.
Quando esse cenário acontece, mais do que simplesmente uma ferramenta construtiva, o Canteiro Móvel faz com que a arquitetura seja elo e agente transformador, promovendo e qualificando as relações, ao invés de segregar.
Botucatu foi a cidade onde o Canteiro Móvel fez sua primeira parada, pois existe ali o sítio Beira Serra, que o grupo utilizou de apoio para esta primeira experiência. Os proponentes também consultaram uma assistente social de Botucatu sobre os projetos sociais dos quais ela tinha conhecimento na região e ela apresentou alguns, dentre os quais estava a Associação IDE, que atende pessoas de classe média baixa, e em muitos casos, em situação de vulnerabilidade social.
Com discurso bem alinhado à prática de educação ambiental, abordando a ecologia de maneira consistente (hortas ecológicas, projeto de agrofloresta com a UNESP, reaproveitamento de materiais, entre outros projetos que abordam a sustentabilidade), trabalhos com arte – expressão corporal, desenhos, pinturas e artesanato, instrumentos musicais, fanfarra, coral , fortalecimento da cultura local, educação física – esportes e lutas marciais – , envolvimento e assistência às famílias, inclusive psicológica, aulas de inglês, espanhol e reforço escolar. Todos os pontos em pleno alinhamento com os propósitos do Canteiro Móvel.
Identificada a demanda, foi feita a primeira visita ao local para conhecer a realdiade territorial e a história da Associação. O bairro onde está localizado o projeto – primeira ação do Canteiro Móvel – possui 2 projetos habitacionais de interesse social de grande importância – CDHU e Cohab V, onde moram a maioria das crianças e jovens atendidos no IDE, projetos clássicos que entregam apenas a casa, isolando a população de comércio, serviço, cultura, lazer etc, o que dificulta o que realmente é habitar.
Quanto ao histórico da Associação, por estar o terreno localizado próximo às habitações de interesse social (HIS) citadas, a prefeitura tinha destinado o local para constituir um centro comunitário. Por má gestão pública, ficou abandonado e acabou sendo ocupado por traficantes e usuários de drogas, o que por muito tempo fez tornou a área perigosa. Então, o IDE fez uma parceria com a prefeitura para dar uso ao espaço que e hoje prospera e contribui para reverter a situação de vulnerabilidade existente no seu entorno.
Todo esse conjunto de fatores contribuiu para que a primeira ação do Canteiro Móvel ocorresse ali, visto ser o IDE a organização cujo projeto social mais se aproximava da proposta de levar arquitetura a locais onde ela é inexistente e poder trabalhar com grupos engajado, fato que contribui para que os processos participativos possam de fato se consolidar.
Texto: Bianca Collin Leopoldino, Cassia Yebra, Ana Beatriz Giovani e Flávia Burcatovsky
Edição: ArqPop
Fonte: Sem Muros Arquitetura Integrada
Fotos: Denise Covassin, Thiago Bertolucci, Henrique Pinheiro, Tomaz Lotufo, Bianca Leopoldino
Mais Informações: @sem_muros;